Espanta Pardais

Hoje ao observar os marotos dos melros, que pelo jeito vão comer mais cerejas que os meus netos, lembrei-me de mais uma memória, que contada agora parece anedota.

Quem é que se lembra de andar a "espantar pardais " nos morangais em criança?

Para os que não fazem a mais pequena ideia do que era isso, vou tentar explicar.

Nos meus tempos de criança, a Póvoa era uma das aldeias que abastecia a capital com os seus famosos morangos.

Dava gosto ver os campos todos repletos das suas cores lindas, o verde das folhas o vermelho do fruto, grandes grupos de mulheres para os apanhar e meter nos cabazes, feitos de cana.

Os homens iam à quinta dos estrangeiros apanhar fetos para pôr nos cabazes, uma camada por baixo, outra por cima, depois atados com guita e muito bem recortados à volta.

Á tarde era vê-los, homens a mulheres a escolher os morangos, havia uma selecção, os mais pequenos e os maiores, que depois era assinalada numa etiqueta que se pendurava em cada cabaz, e isso fazia a diferença do preço.

De madrugada lá ia a camioneta do António Fernandes, carregada de cabazes de morangos para a sobremesa dos alfacinhas.

Nesse tempo não se ouvia falar em químicos e então os campos estavam cheios de pássaros que era um encanto, mas assim como nos alegravam os dias, também davam conta das searas e os morangos então era uma verdadeira tragédia.

Os donos das terras bem faziam espantalhos, punham canas com latas velhas penduradas mas a passarada era mais esperta do que eles e continuavam a comer sempre a melhor fruta.

Era então que "entravam " os espanta pardais, normalmente, rapazes que depois de sair da escola, era "convidados " para ir para o campo espantar a passarada, com umas latas velhas e um pauzito, uma vezes gritando, outras cantando lá passavam uma hora, a troco de um cabaz de morangos, dos mais pequenos, claro, que os outros faziam mal aos dentes, e por vezes acompanhado por uma moedazita para no domingo comprar tremoços e pevides à Ti Romana Portela ou à Ti Deolinda do Zé Sabino, que vendiam de porta em porta ao domingo de manhã e no largo da capela na parte da tarde.

Isto era a vida real, nos anos cinquenta, sessenta, e depois dizemos que: éramos felizes e não sabíamos.

Pois então se não conhecíamos mais nada, que remédio havia se não ser feliz assim, mas sabíamos que vestíamos a roupa que nos davam, que havia crianças que já comiam chocolates e gelados, que tinham lápis de cor, que sabiam onde era o jardim zoológico, etc, etc.

O melhor, falo por mim, nunca me faltou o carinho e a liberdade de poder brincar na rua sem medo, dos perigos que hoje nos atormentam.

E isso eu agradeço todos os dias.

Agora voltando há minha parte da história.

Eu adorava andar descalça no açude a correr para espantar a passarada, e aproveitava para comer algum moranguito maior sem o meu pai dar por isso, assim com assim, tinha sempre a desculpa dos melros que eram os maiores comilões.

Recordo-me como se fosse hoje, quando apareceram os químicos, um dia um vizinho que tinha uns morangais enormes espalhou lá um produto para matar os pássaros, como ficava perto os pássaros apareceram mortos no nosso morangal, o meu pai apanhou-os, meteu-os numa saca e veio a casa mostrar com as lágrimas nos olhos, eram os seus companheiros, a sua alegria nos momentos de cansaço.

Teve muita dificuldade em se adaptar aquela realidade.

Como fazia muitas vezes os espanta pardais também ficaram memorizados no meu caderno.


Gosto de espantar pardais
Gosto de os ver voar
Às vezes, bato panelas
Outras ponho-me a cantar
 
Gosto de andar descalça
Corro atrás dos gafanhotos
Também espanto os melros
Porque eles são marotos
 
São marotos e gulosos
Os morangos vão comer
O meu pai fica zangado
Porque eles são para vender
 
São gulosos e são finos
São até muito esquisitos
Não comem os mais pequenos
Só comem os mais bonitos
 
São pretos e cantam bem
E gostam de boa fruta
Eu corro para os espantar
Assim vai a minha luta

Mais um pedaço da minha vida que partilhei convosco, para os da minha idade, um recordar, para os mais novos, uma maneira de aprenderem a dar valor às facilidades a que tem acesso.

Sei bem que a vossa vida não está tão fácil como se diz, e julgo até que em certos pontos está pior do que no meu tempo, a sociedade exige demais, as aparências iludem, as pessoas julgam o que tens e não o que vales. Mas cada um tem que pensar pela sua cabeça, e as acções ficam para quem as pratica.

 




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