Ti Bom Sucesso
Ti Bom Sucesso
Parteira e curandeira
Cá estou eu com mais uma memória daquelas que me aquecem o coração. Vou contar-vos como foi a minha reacção quando descobri que para usar os brincos, me tinham furado as orelhas com uma agulha e linha.
Não sei quantos anos tinha mas
ainda não estava na escola, portanto menos de sete. Um dia uma senhora de
Lisboa que vinha cá passar as férias, pediu há minha Mãe se ia com ela furar as
orelhas à sua filha bebé. Quando ouvi a conversa fiquei muito admirada, não
conseguia perceber o que se passava. Claro que assim que fiquei sozinha com a
minha Mãe perguntei-lhe como é que se furavam as orelhas, ela fartou-se de rir
e lá me disse que era a Ti Bom Sucesso que fazia esse "trabalho" e
que fora ela que me furara as minhas. Quando questionei a razão de se fazer isso,
a minha Mãe lá me disse que era bonito, que era uma "coisa" que já
vinha lá de trás, enfim tretas. Se fosse hoje eu diria que fiquei "passada".
Na altura fiquei arrepiada e zangadíssima, então para usar aquelas coisas
penduradas, tinham-me furado as orelhas com uma agulha. Mas que raio de sorte.
Pois é mas a vida é que nos
ensina, nunca me esqueci deste episódio e já na escola escrevi uns versos para
não me esquecer.
Cresci a conviver com a Ti Bom Sucesso, uma santa Senhora, e brinquei com ela muitas vezes por causa desta história, um dia disse-lhe que se fosse para ter buracos as orelhas já os traziam, ela riu-se nessa altura, e disse-me: deixa lá que há mais buracos que não vêm de nascença. Além de muitos outros atributos, fez muitas vezes de parteira, só não fez o parto da minha filha mais nova por uns minutos, esperei duas horas pela ambulância e ela comigo para o que fosse preciso, mal entrei na ambulância e passados uns metros a rapariga cá fora. Fiquei com muita pena que não tivesse sido esta santa Senhora a primeira pessoa a tê-la nos braços. Mas ainda assim foi ela que lhe pegou ao colo (já não segui para a maternidade) assim que entrei em casa ainda na maca dos bombeiros. E como pela língua é que morre o peixe, então não é que foi ela que furou as orelhas às minhas filhas, e foi com muito gosto que as levei às suas mãos, quando já as podia levar a uma ourivesaria para o fazer. Quando estava para nascer a minha filha mais velha, ela dizia-me: andas, andas que a criança vai nascer no dia dos meus anos, e nasceu mesmo.
Não precisava disso para me lembrar dela mas é mais um motivo de ligação que guardo comigo. Quis muitas vezes ensinar-me a ver o quebranto[1] mas eu começava a rir-me e nunca aprendi, um dia ensinou-me a “tirar o ar“[2] ao meu irmão que tinha uma "pontada"[3], era feito com uma púcara dentro de um alguidar com água a ferver, em cima da púcara punha-se dois pentes de osso (não haviam pentes de plástico) para mim foi uma paródia, para ela um assunto muito sério, tal como benzer a perna da minha Mãe que tinha erisipela, com uma pena de galinha, ou pôr enxunda[4] de galinha na garganta com um papel pardo para curar as "anginas" agora são amigdalites. Enfim meus amigos eu podia ficar aqui horas a fio a falar dos momentos que partilhei com esta santa Senhora. Resta-me agradecer a felicidade de a ter tido na minha vida. Obrigada Ti Bom Sucesso, um dia destes estaremos juntas para nos rirmos de tudo isto, e sabe uma coisa? Agora homens e mulheres fazem buracos por tudo quanto é sítio, se cá estivesse não tinha mãos a medir.
Esta de
furar orelhas
Cá para mim
tem pouco jeito
Se fosse
para ter buraco
Já vinha o
buraco feito.
Só gostava
de entender
A ideia
destas velhas
Com a agulha
e linhas
Me furarem
as orelhas.
Até gosto da
vizinha
Ela é boa
pessoa
E até fura
as orelhas
Às meninas
da Lisboa.
É parteira,
fura orelhas
Faz uns
queijos que dá gosto
Seu nome é
Ti Bom Sucesso
É Mãe do
António Coxo.
Tem mesmo
cara de santa
Nunca diz
mal de ninguém
Gosto de dar
bons conselhos
E de falar
com a minha Mãe
Gosto muito
de a ouvir
Falar da
vida passada
Já me
esqueci da agulha
Por mim, por
mim está perdoada.
Não se esqueçam que estes versos
foram escritos há quase sessenta anos, a chamar velhas não é? Hoje tenho quase
setenta e tenho a mania que sou nova. Mais uma: os novos não vão entender, algumas
palavras deste meu vocabulário, mas perguntem que eu traduzo ok? Vou deixar-vos
umas fotos apenas para recordar.
Meus amigos um bom resto de dia
para todos. Assim passei mais uns minutos na vossa companhia que muito
agradeço. É sempre bom recordar o que a vida nos ensinou. Quando partimos só
levamos connosco os sentimentos que partilhamos.
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