O Toni
O Toni
Quem é que não conhece a expressão, “comer e coçar, o
pior é começar”?
Pois assim estou eu.
Comecei a mexer no baú das memórias do café, e agora
não me apetece parar, e são tantas, tantas, que bem posso ficar por aqui,
semanas a fio. Hoje vou falar de um cliente com algumas particularidades, era o
que se chamava uma: figura típica. Vinha ao café com um amigo que tinha talhos
em Lisboa e vinha cá à terra, abastecer-se de carne. António Santos mas era
tratado por Toni, tinha sido abandonado na Roda dos Enjeitados, os mais novos
talvez não saibam, mas era um local onde se abandonavam as crianças indesejadas,
e se pensam que eram apenas as mães pobres que lá iam abandonar os filhos, pois
olhem que não, as pobres quase sempre com muito sacrifício, amavam os filhos, e
não os enjeitavam. A maioria dos enjeitados eram filhos de meninas bem que os seus pais queriam casar à sua vontade, e quando
havia um descuido os próprios pais lhes tiravam os filhos e os iam colocar na Roda,
ficando as meninas livres para casar à vontade dos pais. Outras vezes eram descuidos dos patrões e em que as pobres
das empregadas não conseguiam ter mão no assunto, ficando sem honra e sem o filho,
normalmente a essas crianças era dado o nome de um santo e o apelido era sempre
Santos.
Mas eu ia era falar do Toni, pois além de ser marcado pelo seu passado, pelo que eu soube na altura nunca teve sorte na vida nem orientação, fazia uns biscates, arrumava uns carros enfim uma vida sem vida, e sempre que vinha cá almoçava no meu café, normalmente duas vezes por semana, e fui percebendo o quanto era uma pessoa com uma sensibilidade extrema. Fazia desenhos na toalha para dar às minhas filhas, que eram um encanto, fazia versos de tudo e mais alguma coisa, mas à vista era bruto que nem uma porta, e um dia em que eu disse há minha filha para lhe dar um beijinho - sim porque eu sou uma pessoa de afectos-, acho até que o Marcelo aprendeu comigo, e peguei na menina ele deu-me um grito que até me assustou.
Não quero beijo nenhum.
O amigo disse, que ele dizia que nunca tinha deixado
que o beijassem, que lá em Lisboa onde vivia tinham sido feitas várias
tentativas -na brincadeira claro -, mas que foram sempre inúteis. Aquilo mexeu comigo,
e fiquei mesmo a pensar no assunto, mas claro não havia nada a fazer, ele
adorava brincar comigo e fazer-me versos, eu ia brincando mas nunca consegui
saber a razão da sua repulsa em relação a um simples beijo. Seria porque nunca
os tinha tido? Pois não cheguei a saber. Mas chegou um dia em que soube que ele
fazia anos e combinando com o amigo comprei um bolo para lhe cantar os parabéns,
coisa que pelos vistos nunca lhe tinha acontecido, fazia setenta e sete anos,
quando viu o bolo ralhou até lhe apetecer, isto tudo preparado, o meu marido
pegou na filha mais nova para apagar as velas com ele, e eu vou de repente e
dou-lhe dois beijos um em cada face, só mesmo quem assistiu, e ainda estão
entre nós várias pessoas que estavam presentes, ele tratou-me tão mal ralhou
tanto mas tanto que até o amigo já lhe queria bater. Percebi naquele momento, o
seu sofrimento, não percebi o que o levou a isso, mas sei que o que quer que
tenha sido, o marcou profundamente, acabou a chorar e disse-.me:
- Nunca mais te faço versos, e nunca mais cá venho.
Não veio mesmo, isto foi numa quinta-feira. Faleceu no
sábado seguinte atropelado à porta do talho do amigo.
Vou deixar-vos uma mostra dos seus versos, hoje fiquei com pena de não os
guardar na toalha onde ele escrevia mas por norma as toalhas estavam sujas eu
passava-os para um caderno, e deitava a toalha fora. Ele não gostava nada do
cheiro que ficava quando passavam os camiões dos porcos, que era a toda a hora
então na brincadeira ia ter comigo e dizia que mesmo que cheirasse mal ao pé de
mim cheirava sempre a rosas.
Ao
pé de ti cheira a rosas
e quando vais a passar
só para te ver melhor
eu nem me quero sentar.
e quando vais a passar
só para te ver melhor
eu nem me quero sentar.
Tens
um sorriso bonito
tenho que o dizer então
e não te digo mais nada
com medo do teu João.
tenho que o dizer então
e não te digo mais nada
com medo do teu João.
Tuas
filhas são bonecas
parecem duas estrelas
têm bem a quem sair
eu não me canso de vê-las.
parecem duas estrelas
têm bem a quem sair
eu não me canso de vê-las.
Nesta
casa cheira bem
cheira a comida da boa
eu disto nunca encontrei
lá nas ruas de Lisboa.
cheira a comida da boa
eu disto nunca encontrei
lá nas ruas de Lisboa.
Agora ao recordar tudo isto, pergunto, como é que
ainda há dias uma amiga me disse, que lhe parecia mentira, eu ter saudades do café.
Pois é. Como é que posso não ter saudades de trinta e seis anos de vida que lá deixei,
de dias e dias de quinze e dezasseis horas de trabalho, de muito cansaço,
muitas arrelias, muitas noites sem dormir, a vida decidiu por mim, e eu tomei a
decisão certa, mas não se apaga da nossa vida os anos que lá vivi, e hoje
sinto-me em paz por já conseguir dizer tudo isto e partilhar convosco, com um
grande obrigada a todos os que me acompanharam nesta jornada, a todos os que
sempre acarinharam a minha família, a todos quanto brincavam com as minhas filhas,
a todos os que me deram amor e carinho, são esses que vivem para sempre no meu coração,
posso até nem os ver, mas não serão nunca esquecidos por mim, os que me magoaram,
esses bem gostava de os esquecer, mas não tenho tanta capacidade de encaixe,
dizia a minha avó: quem me suja, não me limpa.
Parece que agora deu-me em fazer estes testamentos, oxalá isto não seja mau prenúncio,
mas se for, quem cá ficar, que seja feliz.
Uma boa tarde para todos, o meu obrigado pela vossa companhia. Bem Hajam.
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